Sunday, April 26, 2009

Alvaro lapa - in confidências para o exílio



Em Novembro de 1994 o Miguel Von Hafe Pérez fez publicar nas "Confidências para o exílio" um velho texto do Álvaro Lapa saído no Vespertino A CAPITAL em 2/4/71. Na altura da publicação pela assirio e Alvim dos Textos assinalei a existência deste texto quer ao João Pinharanda quer aos editores. É uma pena este texto desaparecer de circulação. Aqui vai.



"Uma obra é um procedimento imaginário, imaginado, que explicita técnicamente uma função ética."

Álvaro Lapa


Revendo o que já fiz em figura de pintor, eu verifico uma constante, a da imagem saturada. No que creio coincidir com o destino desta arte. O que para mim é flagrante, em cada obra que admiro, é uma saturação dos meios usados, ao nível da técnica, da imagem e da ética revelada. Não é indiferente esta discriminação: a técnica é o primeiro grau, operatório. A imagem é o resíduo, e o ponto de partida; é aleatória, porque qualquer imagem serve, e é, de simbólica, incomparável, porque a sua função representativa é experimentada a um nível que, ao ser viável, a constitui inevitavelmente. A ética é o pathos privado e público, é o carácter e o destino do autor. Todos estes planos são autónomos, por isso podem surgir separados. Mas não são exclusivos, por isso nunca surgem separados. Uma obra é um procedimento imaginário, imaginado, que explicita tecnicamente uma função ética. É, por posição, incómoda, contraditória e flagrante. É incómoda mediante o pensamento ético a que acabam por reduzi-la, é contraditória nos meios em que se arrisca o mais possível a não ser, e é flagrante na veemência da imagem que introduz. A conjugação destes factores é altamente rara, porque só pode ser garantida pelo desinteresse do seu agente. É nisso que consiste ultimamente o plano ético. É um factor de vida, vale dizer, inextripável. Inegociável. Ocioso, pois? Sim, o meu progresso tem-se gerado para o ócio, e nisso me vejo cada vez mais só e livre. . Arte, cultura, são fenómenos de abundância. Só num excesso de crença e de espontaneidade são transmissíveis. Aquém destas tem-se a subarte, a subcultura: o esperanto emocional de que se nutre o convés de baixo, sem nunca assomar ao ar real da amurada. É o grafismo no chão da cova, a idolatria dos escravos. Mas à frente...

Quando se mostra, o silêncio nega-se. Por instantes ele formaliza-se. A arte é a degradação do silêncio. Por isso os criadores a odeiam secretamente, e alguns publicamente. Quando esta aversão se publicita, esteticiza-se muitas vezes mais depressa que as emoções esperantistas do convés de baixo. Se não se publicita, porém, de secreta torna-se purista, apodrece nos seus sujeitos, reduzidos a perpetuá-la em missa negra de um surrealismo corporativo. Que fazer dela, da anartisticidade prévia e santa? Eu creio que ela é um bom tema, é o meu, pelo menos, e o dos autores com quem me entendo. Mas reparai: trata-se, como disse, de um elemento raro de detectar, e não seria aqui que por excepção veríamos o invisível. Eu não devo julgar, pelo sofrimento de que me acompanho para progredir, da raridade do diálogo mediante as imagens do meu progresso. Porque se não progride por assim dizer em linha recta, se não avança para (um ideal comunicável, por exemplo, ou o de um belo explicitável), mas progride-se talvez segundo uma regra cada vez mais impopular. Não vale pois confiar numa cada vez maior comunicação efectiva. Não é nenhum programa, o que estou a sugerir, pelo qual eu ordene as minhas obras. Nem elas me obrigam em figura de passado. Não tenho obra pas¬sada nem futura, que me mace os nervos. Tenho um mundo, para assumir e passar a outro assunto. Darei ou não testemunho da minha realização, conforme tudo o que nela acontecer.

A função de recusa

Do que eu vivo e dou a ver é da recusa. Sugiro um exemplo, o da interro¬gação acessível a qualquer homem. Mas também traduzo a resposta em forma de solução prática, e aqui me quereria ver mais acompanhado. Por exemplo: supôs-se finalmente, que eu sugeria atitude avessa ao século. Por falta de empenho em viver dele? Por desinteresse óbvio para com as manhas que o absolvem? Por lhe não pertencer, de algum modo, o aborrecer? Sim, é patente na minha obra a função de recusa. Mas tem-se mais para ver, se se aceitar a recusa ao fundo do nível, em que o que há não são os nomes e os pleonasmos, e as coisas encorpadas do luxo mole, mas a permanente retirada do ser ante os olhos, e a sua recriação impotente, que é o efémero destacar-se em fundo de vazio, há o Tempo, oh prováveis testemunhas, há a minha morte a desmascarar os exageros do langor animal. Qual é a solução prática?, respondereis. E eu pergunto--vos, provavelmente em pintura: todas as soluções são práticas. Por exemplo? A criação de um acto. Outro exemplo? A sua aceitação sem culpa. Outro ainda? A sua comunicação. Sabeis somar: o optimismo incurável de dever morrer.

Desacreditar da capacidade habitual

Posto que é de ver que se trata, eis o que as minhas obras jamais funcio-nalizaram: uma teoria estética do visível. Estamos num universo que só muito aparentemente tem entrada ou saída. O que vemos realmente é uma fuga inenarrável ante os nomes, ante os predicados. Ou, porque de ver se trata, é um mundo desfigurado. Seres vão e vêm, no campo quase silencioso que habitamos. Uns mais coisas, uns mais pessoas. Muita estupidez. Só raramente o humano, que existe; são os amigos com quem nas¬ce a promessa da escalada, a grande conjura. É destes factores que eu me ocupo a pintar. Porque os meus olhos são à frente, eu terei de ver o que sei. Os factores do que eu sei são: o meu encontro com os mestres da vida, a apologia da minha intuição e a aprendizagem da minha morte. Trato-os expressamente, porque os creio mais urgentes que o meu sucesso ao deixar que se harmonizem, e por isso eles me exprimem didacticamente. Porque o vagar de pintar harmoniosamente é a demissão no viver, "enquanto pintas não vives". Por isso o vigor está em conceber tudo vertiginosamente e para ponderar bastaram os infinitos que te antecederam e em que ruminaste toda a perfeição de que neste instante dispões. Também prezo mais a concepção das, acaso minhas, obras. Por isso pinto mais "exposições" que obras, o que não é bom nem mau, é um método. Pintar "exposições" é acreditar didacticamente na pintura; é também desacreditar da capacidade habitual dos meus concidadãos, que se lhes desse tudo numa só obra a não entenderiam tão devagar. Mas quando penso que em velho irei pintar obras dessas...

Possibilidade de viver mais

Há no imediatamente experimentável, cuja adição dá o quotidiano, um fundo de "diferença": aí nos imortalizamos, se quisermos. Aí nos perdermos, estupidamente repetidos, seres de convívio, animais de luxo de um ideal que é paupérrimo. Nós, impostores, prosperamos num real que flui, flui. É o medo que nos inutiliza. O comportamento artístico avança sobre o medo, sem o negar, mas tornando-o possível, tanto como à coragem. A coragem é esta aprovação do possível, do angustiante. E a arte, que a tem por função (a cultura, diria, se ainda fosse possível falar em arte e cultura sem sentir os brônquios entupidos de legumes podres), a arte é sempre um ofício angustiante alegre e horrorizado. De angustiante faz-se alegremente habitável o medo prévio, o terror fundamental de conferir possibilidade (sentido?) ao nada maior e óbvio.
As obras em que apareci são, por tendência, apenas esta concreção da possibilidade de viver mais.

Escrito no "Diário" de 13/2/71

G. Corso: "...it comes, l tell you, immense with gasolined rags and bits of wire and old bent nails, a dark arriviste, from a dark river within". ("How Poetry Comes To Me") - suja hóspede, vinda de um sujo rio interior, poderia começar por metáforas como esta. As imagens vêm de um sujo rio interior, a espessa memória do muito mais que agradável aparato da existência, das existências, do nem já eu nem tu mas decerto humano, ou talvez indecifrável humano. São os padrões: o corpo, a amálgama dos sentidos, o céu, a terra, a cultura que a mãe institui, os ímpetos da fantasia paterna, o irremediável, a delinquência, a beleza como diamante roubado na orelha do carrasco, a beleza indissociável para sempre da construção do acto nos lugares de agir, o amor voluptuoso indecifrável de dar, "o raio violeta dos olhos dela", a construção voluptuosa da doença, a revelação do ser na aparência, a constituição neutra do universo, a começar no humano circundante, a sabedoria como prática, só como prática, mas a qualidade "boa" do que acontece no instante de acontecer, a frequência dos acidentes físicos, os aventais com bolsos, os despojos funerários do já usado ("old bent nails"). Começo a assumir esta inesgotável perfeição e aí me espero, nesse lugar neutro que é memória mas também paixão, surto e tremenda igualdade.

Sunday, February 10, 2008

BATARDA SUTRAS (REVISITATED)





1. Consciousness is the briefing (the need of art forever) – the urgency of a polytonal immersion in the waters of a non-totalitarian «absolute».

2. Knowledge is random/organized linking. Is licking the soup of chaos and emptiness, and playing the game of order and disorder.

3. Ideas are sensuousness. Ideas stand beautifully in the place of delayed (or deleted) beauty. They are the anxiety of beauty.

4. Time is the living target, surrounded by incarnated axioms. Time is the father of obsolescence and the giver of memory.

5. Sex is the hot seat of knowledge. To know is to establish erotic relations between the knower and things. Knowledge is essentially polygamic.

6. Emergence is ecstasy. Emergence is modernity, futuristic or primitivist novelty thundering. Emergence is the pandemonium of plurality.

7. Art makes you tremble secretly forever. The secrecy of temblor masks all the attempts to definitive meaning.

8. The Universe is a set of footnotes to some obscure art piece. Art works are incarnated footnotes to the way the Universe plays within and without itself.

9. Art enjoys different kind of software’s. Art is not the marketplace of anger or narcissist games of dematerialization.

10. Waking art looks conceptual (or abstract). It is the art that walks the path of explanation and the skills of meditative experience.

11. Dreaming art attempts to represent something and forge powerful narratives that present the glory, or, if you prefer, the Doxa.

12. Unconscious art is merely formal or informal. It is drunkenness and violence liberated or contained.

13. Art changes – the rule is: why not? Art changes because everything changes – Hope and Adventure are the horses of openness.

14. Art without astonishment or bliss is bluff. Be prepared to participate, critically and ecstatically in the superabundance of art.

15. The power/weakness of enthousiasm is the ornament of the next absence.

16. Body is intoxication – everything is toxic. Everything is the body. Our body is more than a temple – a interested tribute to the divine –, our body is a palace, a beauty you can share with other creatures.

17. Living is the collective form of art. Lying is the standard form of communication.

18. Emptiness generates museums. Museums are quite empty, but their stores are crowded. Museums in the minimalist age are the mirrors of acclimatized death.

19. Sets of structures generate artistic axioms. Artistic axioms are the perfume that gives an aphrodisiac scent to art works.

20. Awareness energizes – energy is sexy. Beware! Energy is the primal ready-made.

21. Gods are drug addicted – that’s the cause of our existence. If you situate art in the field of existence («art as existence») you are entering in the frolic job of addiction. And addiction is where gods are more powerful, not you!

22. What art brings to a place, the rest of nature displaces. Displacement is environmental unconsciousness. Displacement is part of the ecology of placement.

23. Space-type is a sexual lake – art explains it better. Explainism becomes the best art around.

24. Mind is a monkey - a naked monkey: nakedness and gestures.

25. Mind is a monkey business - a pornoecological business.

26. Effort leads to sweating. Non-effort leads to grace. Non-effort comes after you have mastered your efforts.

27. Words don’t have secrets or substance. Words, like every other thing, are moments of general metamorphosis. What is metamorphic cannot have a stable essence.

28. The emergence of novelty is the womb of history. History is the seed of emergence of novelty.

29. If you really have seen it, therefore you’re the god of art. Every living creature is an art goddess.

30. Guru is the guy that explains explainism. What the guru does is done specifically, not abstractly like a doctrine. An explanation for one sometimes is not adequate to another.

31. Arrows do consciousness better. Consciousness is the management of the inter-changeability of the forces disposed in the war between you and the machine called reality.

32. Art is mind’s body playing oblation to itself and the strong energy of nature inside the art.

33. The art market feeds artists stomachs. The art system doesn’t supplies a nice return to what artists give. The generosity of art is distorted by economic explotation and absurd criticism – this is the equivocal.

34. The extinction of art is good for the museums – a museum is the legitimating of extinction. Museums are the first step in the death of authorship. In museums forgery is sanctified.

35. The monkey is the self. The self is the parody of the absolute. Mind is the parody of pseudo-Being. Uniqueness is the attraction to globalization and its repulsive reaction.

36. The self makes sense. The self is sensuous.

37. The senses make selves. Irony is the self self-conscientious of its limits.

38. Knowing is branding. Knowing is networking in the jungle of preferences and influences that personalise a self.

39. Artists are brands. That’s the fakeness of art. An artist playing just one role is like a whore doing sex always the same way.

40. Art is sensing knowledge. Philosophy cheats because it is not physical enough.

41. Time changes illusions and delusions into illusions and delusions. Illusions go to the laundry, but dirtiness remains.

42. In the end the body is endless transformation. So is art. So are you. Like the body or the art you are not a thing that stays the same forever.

43. Dissolution in reproduction smells like victory. Reproduction is the returning of memory in the non-metamorphic.

44. Politics of power are the hope to fit in a museum forever. Politics of power are preludes to generalised rape.

45. The spontaneity of the viewer arises more and more where art works are. Did you notice that art works are everywhere?

46. Authorship is the perfect role for the lonely self. Heteronomy is the perfect role to the expansive selves.

47. The stage of art doesn’t recognize the players. The players don’t recognize themselves.

48. Spectators are postponed authors. Spectators are afraid of being inside the filthy experience of creativity that gives access to bliss.

49. Intelligence gives us extra-powers and makes purity irrelevant. Be clever, but admit in public that you remain stupid.

50. Creativity is art at last. Creativity is not in the viewer, even if he can invent strange tales about some objects.

51. Here or there, my dear, is better than somewhere. Be mostly in yourself!

52. Different positions do it better. Different points a view are like a massage to the economy of brain.

53. Pay attention to simple forms. They shall return and return – although I do hope they’ll return again.

54. Be friend of complex processes. Be the performer of the unpredictable.

55. The world is the last fashion of nature. The «world» is the last media reorganizing older information into newer news.

56. The deadline is wrong because artists are lazy. Laziness is the most productive & rich part of the art work.

57. Good breathing gives better critics. Eat well. Wash your teeth. Breathe completely. Be full and empty.

58. We become more and more like ourselves. We become more and more with more than we were supposed to be.

59. Conversation is the commerce of powerless mantras. Sometimes powerless attitudes are the best strategy.

60. We stay and go. Things are passing by. Let’s take a walk. The walk walk’s you.

61. Our universe is the freedom of having great rules. Our role is of being incarnated wit. Having different and contradictory rules develops heteronomy.

62. Pain and pleasure are puns. Their performance can be bitter or sweeter.

63. Play fictions. Become free. Share your creativity. Be responsible. Be critic. Be creative. Be more than the next fashion.

64. Every link is an extra bonus. Tilt!

65. Again and again, art – lost in awareness…

Saturday, February 09, 2008

THE ENDLESS MANIFESTOS (patchwork in congress)





You think that I am neither a learned artist neither a punk Philosopher
but I am trying to keep the whole of what’s going on in the excitement of my writing.

Of course. Isn't that so? You doubt!
I have multiplied distinct versions of trying to have principles, and I am becoming the Becoming in the meantime..

Rapacity is the main force of globalization, would say old Ez – language is more the place of the poetic digestion of consciousness then the marketplace of appropriate names to the things. Terminology is the desire of exactitude. Terminology is a failure – but we need it!
I hesitate to talk of what I don't understand completely, I feel an adventurous embarrassment, but talking is my desire of the next revolution within me and the world that is near.

Authorship is the dirty version of the interface of plurality of the subject (what we call ourselves) and the games language can play. If you get rid of authorship you get rid of language and the life and memory within.

Economy is in perpetual state of war – trying to make of us future slaves of debt.


The modern artist must live by complexity and flexibility. His gods are ironic gods. Those artists, so called, whose work does not share this tricky strife, are uninteresting.

Pop-abstraction and conceptual luxury are the lousy dogs of the post-modern class of rhetoricians.
Post-structuralism has generated a scholastic that has canalized the original liberating forces to a kind political correct neo-fascism.
Art never refuses – art is the non-refusal, but sometimes plays the sublime role of dark refusal.
«A great age of literature is perhaps always a great age of translations» (Pound) – literature is translation emancipated from what was supposed to be translated. It is the babelisation of older themes.

ERNESTIADA




Cada vez acredito mais na eficácia do fragmentário, do intuitivo, do metafórico, em lugar das panelas de pressão justificativas – os textos dos artistas constroem-se como arte e não com roldanas lógicas, por mais bem afinadas que essas sejam. Os textos dos artistas funcionam mais como afrodisiacos do que com intuitos legisladores.

O nosso saber está sempre a despedir-se daquilo que sabe – sem ingenuidades nem sabedorias.

Quando me refiro a um texto não me refiro a algo de que nos possamos fardar, nem a uma cadeira onde nos possamos sentar – o mundo como obra-de-arte ou literatura existe como pulsão híbrida na natureza, mesmo antes da consciência tal como a imaginamos que temos nesta forma especializada de espécie. Um texto é a vontade de ser mais incisivo, seja num sentido polémico, seja como aquietamento, seja até como consolo «revolucionário ou burguês». Contar com utopias ou atopias, profecias ou indicativos silêncios, rumores ou disciplinadas músicas é uma «mera questão de tática»!

Somos radicais no híbridismo, ou hibridos no que diz respeito a radicalidades: só as queremos sem ressentimentalices – um estado zero é sempre, como se referiu a Estela Guedes a propósito do Herberto «carnavalescamente canibal» - um pensamento festivo surge como dissidência da tradição melâncólica, como transformação primaveril das heranças artisticas e filosóficas dos passados recentes e remotos.

Desconstruímos serializando e revisionando – toda a actividade, mesmo a teórica e a pictórica é performativa.

Se tudo o que se vê é falso o que não se vê ainda é mais falso. Fraud after meaning? Meaning after fraud? É certo que não podemos nem ignorar o que vem na letra dos textos nem tomá-los à letra. São as casas espelhantes de Pessoa, de Nietzsche e de Wittegenstein. Os personagens de um romance nascem do seu «autor» mas não o são senão na forma como a interface entre o autor e as suas caçadas criativas se reproduzem como consciência quer do autor quer de quem se apropria textualmente ou não dos textos.

Todo o traidor aguarda o desenlace mascarando-se de espectador.

A nossa condição post-apofática não nos livrou dos mitos mas desembaraçou-nos do entricheiramento negador. A teologia negativa foi durante muito tempo a promessa de um ateísmo integral e o ateísmo sofreu fanáticamente do seu combate contra os fantasmas da religião. Estamos no ponto poliateísta em que nos podemos livrar de todo o sectarismo. Contra o voto religioso ou semelhante, contra a impiedade e a estreiteza sectária.

Passadas as vanguardas e as post-modernidades (no que assanhadamente tinham de vontade de diferir reactivamente) entramos num diferendo generalizado, crítico, teórico e encantado em que nos gladiamos connosco. Da intolerância das vanguardas não herdamos nada senão o seu carburante – o fogo dos ultimatos, o desejo de partilhar e intervir, o que acena docemente por detrás da retórica do agit-prop. Nós não regressamos a coisa nenhuma – o passado, a côr, as emaranhadas confissões semiológicas (Saussurre, Barthes, Pierce, etc), é que vêm ter connosco.

Esta é a nossa homeo-estética, uma arte-teoria tão natural e artificial quanto a natureza. Os jogos de linguagem levam-nos onde quisermos que eles queiram, ou até onde não contavamos ir. Continuamos a amar o estado explosivo e a cada vez maior abertura do estado do art-world.

« Só algumas coisas mereceriam maior referência e análise, mas fica para outra oportunidade: os binómios explosão/ implosão, «regressão de enraizamento» ou vernacular/cosmopolitismo; morte do Pai/morte do nome do Pai: a emergência do terrorismo numa sociedade altamente tecnológica; a menipeia, a paradoxologia, a sedução, a agonística. A dádiva e o ‘potlach’…» dizia o zé ernesto

o abominável inominável










Escrevi antes (no tratado da contrafacção do pensamento) : a ilustração mais fatal da mentira é o silêncio. E mais adiante: cala-te!... como todos os culpados.


Temo que a minha noção de dissimulação/dissimulacro seja entendida como a apologia da mentira num sentido vulgar, quando esta é uma crítica da simulação/simulacro e de toda uma escola «essencialista» que acena abusiavamente com a bandeira da verdade. Como bom nominalista desconfio do uso filosófico do termo «verdade», preferindo a cautelosa noção de plausível. Por outro lado, e na boa e cómica tradição crítica de Luciano (e do velho paradoxo do cretense), o assumir da ficção enquanto ficção deixa-nos não só mais lúcidos e honestos. As pródigas relações entre a ficção e o que vai acontecendo é que têm que se lhe diga - coincidência ou fatalidade.


Mas o propósito aqui é um combate á apologia do inominável, indizível e outros vocábulos afins. Admira-me o prestigio de que estes termos gozam para descrever uma espécie de servidão ao terror, seja do supostamente sagrado, seja das forças tiranicas da natureza, seja da dilaceração social ou técnica. Mesmo as teorias apofáticas do pseudo-areopagita e do Scotus Eurigena não são uma entrega às mãos do indízivel - questionam e dão alternativas práticas à dificuldade de lidar com a vontade de ser mais superlativo que o superlativo. Já a teorização kantiana do sublime nos faz temer o pior. Tal como na experiência mística não há termos adequados - e a experiência mística, tal como o sublime, é concreta. São experiências muito raras... mas fazer uma industria do inominável e do indizível é uma estranha tentação...


A arte tem sido um laboratório desta tentação. A indeterminação ou mesmo a ausência de assunto reflecte-se em obras de arte que são voluntáriamente essencialistas - refiro-me à comum tradição da arte dita abstracta, assim como à arte minimalista e conceptual. Quando estas se reivindicam de um filão teoricamente puritano acontece o pior. Quando nos prometem o indizível como mercadoria há algo de fatal.


Quando o nosso silêncio se torna uma imagem de marca é porque nos entregamos a uma censura voluntária. Há várias hipóteses: a) não falamos porque nada temos para dizer; b) não falamos porque temos medo de dizer; c) não falamos para nos comprometermos com a linguagem e as solicitações quotidianas. O silêncio sistemático é uma evasão ética, como o fazem os monges e os ascetas supostamente contemplativos. O silêncio sistemático é o silenciamento progressivo do pensamento.


Não estou aqui a críticar o silêncio temporário. Antes pelo contrário - um jejum de palavras torna-as mais incisivas e acutilantes e afina a visão das coisas, tornando as presenças mais presentes, às quais se procuram adequar palavras e expressões mais ricas... mas a linguagem percorre metamorficamente a natureza (a artephysis) - é certo que a mascara com encenações de consciência, mas desde que a consciência, graças a uma sobreabundância, verbalizou, não nos podemos desligar desse filão verbal que por mais pequeno que seja num universo muito pouco consciente e vazio, se tornou a imanência mais indispensável (não há linguagem nem pensamento sem as singularidades de quem diz e pensa).


Alain de Libera diz que a censura gerou muitas das ideias e pensamentos medievais, porque esta tornou determinados temas, heréticos, mais pertinentes, contornando-os ou indo directamente ao assunto. Aqui ainda se trata de combater o silênciamento.


Mas é o nazismo que extrema o silênciamento, que leva o indizível aos seus limites. A ultima frase do Tratactus de Wittegenstein anuncia esse silenciamento. Heidegger essencializa esse silêncio e lança uma anatema sobre qualquer idioma que não seja o seu. O indizivel é a presença do exterminio. Beckett é o autor tagarelante que melhor traduz a época aurea do inominável.


Autores respeitaveis como Agenbem conseguem escrever coisas como esta: «o homem é esse vivente que se suprime e, ao mesmo tempo, se conserva como indizível - na linguagem.» Agenbem recorre constantemente aos paradoxos hegelianos. Mas na linguagem não nos suprimimos nem nos conservamos - metamorfoseamos, transmitimos e, por vezes, progredimos. Além disso nada disto acontece como indizível, mas acontece precisamente contra o prestigio do indizível que é a marca da morte. A comercialização do indizivel é a programação mortífera, é o assumir de que o traço da existência é a sua mortalidade - o ser para a morte, no calão heideggeriano. Ainda parafaseando (ao contrário) Agenbem , o homem é aquele que resiste à supressão final anunciada no indizível. E resistir ao indizível é cair no campo multiplo (e sujo) das representações. E é isso que é problemático e irritante sobretudo quando há uma enorme tradição que nega a «representação», não compreendendo que mesmo as imagens «abstractas» ou «simbolicas» não negam necessáriamente a representação.


Nós estamos assim no lado, mais materialista e judeu, de uma condição de resistência à morte. Penso em Canneti. Penso nesse emaranhado de textos sumérios e acádicos que nos deram o Gilgamesh. Penso na Odisseia, cobarde e astuta, contra a Íliada, heroica e tanatófila. Penso na côr, no sensualismo, na doçura, na terrivel dificuldade que é gerir a simpatia e a ternura. Penso que podemos ser asseados e representar coisas sem ter horror ao sujo. Penso que não temos que fazer bluff e propaganda com o indízivel para termos experiências ditas místicas ou sentirmos a presença das coisas e da natureza como uma experiência inalienável. Penso que que a linguagem, por mais sobrecarregada de clichês e saturada de redundâncias é o que nos faz transmissiveis, uns nos outros, continuáveis (eróticamente), porque a linguagem é sobretudo o que vamos constituindo com ela, o que vamos inventando e enriquecendo - não é, como pretendia Heidegger e os estruturalistas, um pacote que nos vai falando, como se lhe fossemos submissos porque possessos.


Há um trabalho/òcio de desessencialização que ainda está por fazer. Pode ser extremamente difícil. Também pode ser divertido.

Thursday, February 07, 2008

diogenes, cristo & dadaísmo


Não foi acidental Johannes Baader exibir-se ostensivamente como Cristo. No fundo não há diferença assinalável entre ele e Cristo, se bem que as aparições deste dadaísta tenham sido mais espetaculares. O primeiro grande impulsionador do dadaísmo também se tornou um fervente místico cristão (Hugo Baal). Picabia, um suposto anti-cristão escreveu o seu Jesus-Cristo Rastacuero, no que talvez seja o catecismo filosófico do dadaísmo. Mas eu iria mais atrás de Cristo e descreveria este como uma variante do filosofo de Sinope, o Diógenes que se masturbava em público e não tinha problemas em comer carne humana, um parente europeu dos actuais Kapalikhas e Aghoris, canibais e místicos. Jesus também introduziu o canibalismo, simbolico ou não no ritual e admira-me que um cristão se sinta incomodado quando ouve falar de actos canibais, quando na missa simula conscientemente a comunhão canibal do corpo de Jesus. Também Picabia publicou uma revista chamada Cannibale. O «pacifismo» dos dadaístas tem um fundo cristão, e a expulsão dos vendilhões do templo e outros actos cristãos bem podiam passar por genuínos actos dadaístas. É estimulante a associação de McEvilley entre dadaísmo e cínicos num livro, e entre cínicos e Pashupatas noutro livro. Custa-me a acreditar que Cristo, para além da sua tradição religiosa fosse complemente ignorante quer das influências dos cínicos no império romano, quer de hipotéticas influências de correntes do oriente de extremo ascetismo ou anti-sociais que estão presentes na índia desde, pelo menos, os Upanishades. Ver Jesus como uma variante de Diogenes? Porque não? Vêr o Dadaísmo como uma variante crística na arte? Em boa parte...

Monday, January 21, 2008

o bigode nietschiano de sloterdijk


há no bigode de sloterdijk um pastiche do bigode de nietszche - o farfalhudo bigode do autor de zaratrusta parece-nos indispensável para disfarçar qualquer coisa - haverá outros filósofos com bigodes, mas qualquer bigode está sempre a mais - e nietzsche seria um filósofo cuja filosofia é aperfeiçoavel retirando-lhe o bigode - o mesmo se poderá dizer de sloterdijk?
Filosofia ou pilosofia?

Saturday, December 22, 2007

ménis e métis


Um dos poemas homéricos trata da Ménis de Aquiles e o outro da Métis de Ulisses - parece haver um mecanismo à Raymond Roussel neste jogo sonoro entre o «n» e o «t» que se estende sobre a Odisseia docemente ( ou «paródicamente» ) -ler a Odisseia como uma espécie de refutação da Íliada será insensato? Os helenistas gostam de afastar esses espectro. Mas creio que estes dois termos, a Cólera e a Astúcia abrém-nos as duas grandes estradas do pensamento e da poética ocidental - uma frontal, belicosa, exposta; a outra dissimulada, prudente, púdica. Uma celebra a Memória como a entrada violenta e bela na morte, expediente juvenil e exemplar da camaradagem. A outra celebra a beleza de envelhecer conjugalmente, e de como isso deve ser conquistado numa luta contra «o verde terror da morte» e de todos os artifícios amnésicos (desde a droga à clandestinidade sexual).


A via da Odisseia é mais «conservadora»? Provávelmente! É a ética de dificil gestão dos tempos de paz e dos fantasmas que o assolam. Mas não é esta preferível à violência destruídora das linhas da frente? A Cólera de Aquiles é o entusiasmo «higiénico» das vanguardas. Não sei se nelas conquistamos alguma Troia - mas a sua tradição está povoada de coisas, e esses despojos constituem boa parte da nossa memória. Vai ser difícil retornar...

Thursday, December 20, 2007

a lógica da denuncia


sloterdijk, onfray, agamben e quignard - estão vivos e o seu estilo e os seus temas dão-me vontade de reflectir... não estão, de modo nenhum na mesma linha, mas procedem a uma revisão da história do pensamento e da cultura que nos abre um apetite pelo pensamento e pelos tantos que pensaram... confesso que me sinto mais próximo de sloterdijk no ambiente, de onfray no estilo e de quignard nos assuntos.


No último livro a que tive acesso de Sloterdijk, que só li salpicadamente («Cólera e Tempo») está exposta com veemência a lógica politica e religiosa do radicalismo. Poderiamos usar este livro como instrumento critico do projecto Onfray cujo titulo espelho é «A politica do rebelde». São dois nietzchianos que sabem perfeitamente o que é o ressentimento. No caso de Onfray há um ressentimento de fundo contra a igreja católica que é justificado, mas parece que Onfray ainda não percebeu que a liberdade fervilhante e lirica do Maio de 68, tal como a identica experiencia portuguesa da Revolução dos Cravos, também foi pródigas em desrespeitos, tiranias, injustiças, sadismos, e que elas própria engendraram a sua auto-destruição e o nascimento de outro tipo de tiranias (mas também tiveram as suas virtudes «reformadoras»).


Acho que temos que ir mais longe e responsávelmente na prática do misticismo revolucionário e pensá-lo no ponto de vista de uma ecologia politica mais vasta - e ecologia aqui significa sempre um equilibro dinamico com os seus estados de excepção. É certo que há uma promessa inalienável na alegria revolucionária - uma promessa de mais alegria e de mais intensidade. Mas essa alegria não reside na revolta, ideal juvenil, mas na festividade produtiva e poetica, a que Nietszche denominava dança.


A função de resistência às formas de dominação é uma tarefa a que não nos podemos furtar. Mas vi sempre os profissionais da resistência avançarem com a pior das lógicas, com correspondente ingenuidade e entusiasmo: a terrível LÒGICA DA DENÚNCIA. Esta lógica é a melhor das armas de canalização da cólera. Hoje a imprensa, seja de que tipo for, é o principal agente da lógica denunciadora, não muito distinta da das seitas e organizações terroristas. O que corresponde na prática a esta lógica são todos os mecanismos de controle. A imprensa apela ao constante controle, e sem se dar conta disso, à generalização da burocratização de todo o tipo de actos.
Sim, é verdade, a denuncia publica tem impedido horriveis crimes e tem evitado catástrofes eminentes. Mas assisti frequentemente à destruição implacável e injusta de tantas vidas e a tantas atrocidades por parte da imprensa denunciante sem uma migalha de arrependimento, sem que os profissionais diligentes e os seus imprudentes editores parassem um momento para reflectir. Posso equiparar esses actos ao dos denunciantes que, por exemplo, depois da Guerra Civil de Espanha, mandavam para a morte, através de denuncias anónimas, os supostos vizinhos republicanos.
Também, no campo da arte, a lógica de denúncia está em excelentes dias - confesso que lhe prefiro de longe cavalgadas mais poéticas, mesmo que sejam mais «burguesas», ou, num sentido extra-subjectivo, mais «liricas». E é esse lado lírico que amo no dadaísmo, que em muitos aspectos se portou como qualquer outra insensata seita - como em todas as seitas com os seus gúrus e candidatos a papas.